Tenho evitado envolver o blogue "Mundo da Rádio" na discussão de assuntos da política, contudo há propostas e situações que justificam um comentário neste espaço.
Aproveitando o embalo do projecto de revisão constitucional que o partido Chega pretende apresentar, eis que a Iniciativa Liberal decide colocar na mesa de discussão alguns assuntos, incluindo o fim da obrigação de o Estado assegurar a existência e o funcionamento do serviço público de rádio e televisão. Ora, na minha óptica, só podem existir duas razões para que os liberais defendam o fim do serviço público: ou excesso de liberalismo, que vê toda a cultura, toda a língua portuguesa, toda a informação jornalística e toda a consideração pelos portugueses como um mero produto comercial que pode sair do mercado se não der lucro, ou ignorância grosseira do que é, o que deve ou não ser, o serviço público de rádio e televisão.
Em primeiro lugar, o serviço público de rádio e televisão (chamemos-lhe, para simplificar, SPRT), deve consubstanciar-se num conjunto de programas que representem a História, a cultura portuguesa e, sobretudo, a língua portuguesa. Deve também contribuir proactivamente para o prestígio da comunicação social, credibilizando a informação. Numa altura em que as notícias falsas propagam-se numa fracção de segundo através das redes sociais, a comunicação social, em especial a de serviço público, deve ajudar os ouvintes e os telespectadores no sentido de distinguir entre o que está, de facto, confirmado e o que foi escrito, quiçá com intenções políticas veladas, com o objectivo de desacreditar os meios de informação oficiais.
Não menos importante que os pontos anteriores, o que está também em jogo é o prestígio de Portugal, a promoção da língua portuguesa no mundo e, num país de emigração, o respeito pelos portugueses e pelos lusodescendentes espalhados pelo mundo. O quarto ponto é a garantia da segurança nacional. Na eventualidade de uma emergência, o SPRT deve estar imediatamente disponível para acompanhar em directo toda a actualização da informação relevante para os portugueses afectados por uma catástrofe natural ou outra circunstância especialmente grave (terrorismo, intervenção militar por forças estrangeiras que invadam o território nacional etc). O SPRT deve, sempre que a situação o justifique, transmitir em directo as declarações do presidente da república, do primeiro-ministro ou de outro órgão de soberania. Recordo que nos incêndios de 2017, a Antena 1 foi a única rádio com cobertura nacional que esteve a madrugada toda a acompanhar em tempo real o evoluir da situação. Isto não é serviço público, senhores da Iniciativa Liberal?
Dito isto, note-se que até agora nunca utilizei a sigla "RTP". No limite, o serviço público não tem de ser prestado pela RTP; até podia ser pela empresa "ACME" ou "XPTO" ou "Rádio Pública Portuguesa" ou outro nome que queiram inventar. O que tem de haver é uma definição legal do que é o serviço público , da entidade ou entidades que exploram o serviço público e de como o Estado assegura que o serviço é efectivamente prestado. Até admito (apesar de pessoalmente não concordar com a ideia) que seja possível que parte do SPRT seja prestado por empresas privadas, o que a Constituição da República Portuguesa impõe - e a meu ver bem! - é que, em qualquer circunstância, tem de haver uma definição clara do que é serviço público de rádio e de televisão, das suas obrigações e de como o Estado garante que o serviço público funciona de facto.
Os mais que liberais saberão que os Países Baixos, um Estado visto como um bom exemplo de liberalismo, têm a Nederlandse Publieke Omroep (NPO)? E que um país tão capitalista quanto os Estados Unidos tem a National Public Radio? Não conheço nenhum país de primeiro mundo que não tenha um serviço público de rádio e de televisão. Seja totalmente público, seja através de uma fundação, seja através de outro modelo. Nem mesmo um governo conservador-liberal como o de Margaret Thatcher ousou terminar com o serviço público da BBC. A não ser que a IL se inspire no liberalismo tão democrático do regime de Augusto Pinochet no Chile, um grande exemplo de liberdade (estou, naturalmente, a ser irónico)...
No meio de uma pandemia, a exigência do funcionamento de meios de comunicação social credíveis, sejam de empresas públicas ou privadas, é, mais do que nunca, inegável. Se as pessoas se informassem apenas através das redes sociais, a esta hora teríamos milhões de cidadãos a recusarem-se a usar máscara, hospitais em verdadeiro estado de guerra, com milhares de doentes Covid e não Covid a morrerem por falta de assistência, tudo porque as pessoas acreditavam em tudo o que liam na Internet e não havia meios de comunicação social a entrevistar epidemiologistas e outros médicos que lidam diariamente com situações complicadas, transmitindo para todo o país informação confirmada por especialistas com conhecimento de causa. Por muitos defeitos que tenham os jornalistas, estes continuam a manter o profissionalismo que não se coaduna com charlatões que não se importam que morram milhares de pessoas com Covid-19 porque querem à viva força descredibilizar a comunidade científica e o conhecimento adquirido em vários séculos de epidemias!